Uma pesquisa pioneira desenvolvida pelas Escolas de Direito e de Economia da FGV SP comparou a aplicação de multas pela administração tributária brasileira e de outros países. Especialmente sobre a multa qualificada, a pesquisa demonstrou como essa sanção pode se tornar contraproducente, injusta e desproporcional. Além disso, os pesquisadores afirmaram que, ao comparar Brasil com outros países, “só aqui ela é adotada sob critérios subjetivos”, sendo aplicada com base em uma suposição do Fisco quanto à intenção (dolo) do contribuinte em praticar conduta ilícita.
Para penalistas, essa última afirmação causa espanto e desassossego. No Direito Penal, o dolo é um elemento central da conduta criminosa, exigido para a maioria das infrações penais. De acordo com o Código Penal, pratica conduta dolosa o agente que, representando mentalmente a realidade que o cerca e sua própria conduta, age ou omite querendo o resultado ou assumindo o risco de produzi-lo. É compreendido, assim e tradicionalmente, como a consciência e a vontade da realização dos elementos objetivos (a descrição) do crime.
O espanto decorre da constatação revelada pela pesquisa de que o Fisco exige a (má) intenção para a aplicação da multa qualificada mesmo diante de contribuintes pessoas jurídicas, que nada mais são do que criações jurídicas desprovidas dos atributos humanos da consciência e da vontade. Não podem, portanto, representar mentalmente os elementos da infração e querer ou assumir o risco de produzir um resultado. Esse é um atributo humano, da pessoa natural. Esse atributo poderia muito bem ser encontrado no administrador da contribuinte pessoa jurídica que pratica a infração dolosamente, e que, por ter essa qualidade, permitiria ver seu ato como um ato da pessoa jurídica, com o que se poderia responsabilizá-la (também) pela infração.
Essa forma de imputar, atribuir, transferir os atributos de uma conduta humana a uma pessoa jurídica não é nova. É utilizada, por exemplo, em nosso sistema jurídico para atribuir responsabilidade penal às pessoas jurídicas por crimes ambientais. Bem ou mal, um modelo inspirado na legislação francesa. Esse modelo reconhece o óbvio: que consciência e vontade são atributos humanos.
Apurando a prática dolosa da infração por um administrador ou sócio da empresa, o Fisco poderia, então, atribuir à contribuinte pessoa jurídica a responsabilidade pela sanção: multa qualificada. Todavia, sabem todos que não é isso o que acontece na prática. O Fisco não apura condutas de pessoas naturais nos procedimentos contra contribuintes pessoas jurídicas (mal o faz naqueles contra contribuinte pessoa natural). Como pode, então, afirmar a presença do dolo de praticar a infração e que, segundo a pesquisa, é necessário para impor a multa qualificada? A verdade é que não pode e, na prática, não o faz.
E a prova disso é dada por um outro achado da pesquisa. Segundo os pesquisadores, as circunstâncias mais aceitas para caracterizar o dolo são, por exemplo, a utilização de empresas fictícias, o desmembramento indevido de empresas para enquadramento em regime especial de tributação (Simples); a utilização de pessoas interpostas (laranjas). Mas todas essas circunstâncias são objetivas e não subjetivas, nada dizem sobre o que a “empresa” representou mentalmente ou desejou.
E isso nos leva ao desassossego. Como se vê, o emprego do argumento do dolo, da intenção de fraudar, é meramente aparente, um adorno retórico, que não é levado a sério nem mesmo pelo Fisco e que, por isso, pode ser utilizado para camuflar arbitrariedades.
Eis aí mais uma boa razão para revisitar diretamente a regulação da multa qualificada. Também se pode revisitar indiretamente uma parte da problemática gerada por essas multas: os casos nos quais à multa qualificada se segue a ameaça de uma sanção penal. Isso porque uma parte das multas qualificadas toma como arcabouço fático a prática (verdadeiramente) intencional de condutas fraudulentas, o que conduz à formulação de um juízo de suspeita de que essas condutas possam configurar a prática de crime tributário.
Nesses casos, a administração tributária se vê obrigada a encaminhar ao Ministério Público uma representação fiscal para fins penais, abrindo-se, assim, a via para uma possível dupla punição pelo mesmo fato: a multa qualificada e as sanções penais (privativa de liberdade e pecuniária). A discussão entre instâncias sancionadoras – a administrativa e a penal – tem se dado, entre nós, primordialmente, no terreno da competência para determinar a consistência do lançamento (de ofício), ou seja, uma discussão sobre prejudicialidade, cujo ápice foi alcançado com a edição da Súmula Vinculante nº 24 pelo Supremo Tribunal Federal
Mas também se pode olhar para essa questão com as lentes da vedação da dupla sanção pelo mesmo fato. Na Espanha, por exemplo, a suspeita da prática de crime na apuração administrativo-fiscal impõe a imediata suspensão de qualquer procedimento orientado à aplicação de sanção administrativa e a remessa da apreciação integral da infração ao juízo penal (artigo 250, 2, Lei Geral Tributária). Essa é uma solução interessante e que poderia ter efeitos positivos para evitar que o Estado dispare um verdadeiro tiro de canhão (multa qualificada mais sanções penais) contra o contribuinte que pratique evasão fiscal. Afinal, as sanções não deveriam almejar a eliminação do contribuinte, mas evitar que pratique infrações graves.
Aldo de Paula Júnior, Heloisa Estellita e Thaís Tereciano são integrantes do Projeto de Pesquisa “Evasão Fiscal: uma proposta legislativa para debate”, do Grupo de Pesquisa em Direito Penal Econômico e da Empresa da FGV Direito SP (GDPEE)
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Publicado no Jornal Valor Econômico, edição de 16/05/2023
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